livro para ler – CAPACETE 10 anos
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Entre fronteiras impingidas e cidades afet(u)adas: hospitalidade
Marcia Ferran
Um ano e meio antes das revoltas de 2005 em vários subúrbios franceses multi-étnicos, o espetáculo “Le dernier caravansérail”1 da trupe do Théâtre du Soleil e a exposição “Musée précaire Albinet” enfocavam, cada um à sua maneira, o tema dos deslocamentos e das identidades locais. Na peça a diretora francesa Ariane Mnouchkine traduzia com grande impacto dramatúrgico e cenográfico um conjunto de relatos recolhidos de refugiados e clandestinos em fuga do Afeganistão, Irã ou Kurdistão em busca de horizontes mais saudáveis na Europa. Já o artista suíço, Thomas Hirschhorn2, convidado pela friche3 Les Laboratoires d’Aubervilliers, propunha construir um museu “precário”, onde a “precariedade” estivesse reduzida a sua forma construtiva (containers, madeira, papelão) que seria compensada com um acervo de obras icônicas do séc. XX, de Duchamp, Malevitch, Mondrian, Warhol, Beuys, Le Corbusier, Léger, Dali. As obras foram cedidas especialmente, após uma complexa e longa negociação, pelo Museu de Arte Moderna Georges Pompidou e pelo Fundo Nacional Francês de arte contemporânea. Um dispositivo híbrido entre arquitetura e escultura foi construído em frente ao conjunto habitacional Albinet (cujos moradores são em sua maioria de origem estrangeira) e desmontado no verão de 2004 em Aubervilliers, subúrbio parisiense, em cooperação com os moradores. Dentre outras áreas fronteiriças em que se move, o artista reformula a herança de Duchamp: se a arte é o que o artista faz, o museu é o que abriga o patrimônio, inclusive uma construção feita de materiais frágeis. Ao idealizar um museu não apenas como lugar de exposição, mas também como lugar de sociabilidade – já que o acesso é livre, e havia um ambiente “sala de estar” com televisão, livros e sofás- uma esfera de hospitalidade instaurou-se.
Mais do que uma simples coincidência na generosa oferta artística da região parisiense, a diretora francesa e o artista suíço, a primeira tocando nos deslocamentos humanos e o segundo tocando no deslocamento de obras de arte para fora dos museus, estavam em fase com o tom crucial das transformações deste séc. XXI: fronteiras geopolíticas e fronteiras subjetivas. Meu objetivo aqui é enveredar por uma dimensão que atravessa criticamente tanto o âmbito das fronteiras geopolíticas quanto o âmbito das fronteiras poéticas, ambas banhadas pelo fluxo mercadológico mundial: a hospitalidade.
No que tange às fronteiras geopolíticas, o período entre 1980 e 2005 marcou a perversa multiplicação do fenômeno de campos de refugiados (cuja invasão do Iraque foi apenas a face mais midiatizada) perpetuando um estado de exceção do direito, como analisado por Giorgio Agamben4 nas antípodas de qualquer hospitalidade. A presença do imigrante parece constituir o “núcleo” do desafio político e cultural de uma política cultural contemporânea que deveria lidar intrinsecamente com deslocamentos poéticos concomitantes aos deslocamentos por entre fronteiras geopolíticas (que em 2002 também havia constituído o cerne da Documenta 11).
Em relação às fronteiras poéticas nas artes visuais, são especialmente férteis as trocas osmóticas que vem se consolidando a partir de uma decisiva inflexão dos holofotes por sobre as dimensões de arquiteturalidade e urbanidade, agora tendo o mundo como território (ainda que mais simbolicamente do que literalmente devido aos impedimentos diplomáticos crescentes). De um lado arquitetos e urbanistas adentrando os altares artísticos (dois exemplos extremos são a presença do urbanista chileno radicado no Rio, Jorge Mário Jáuregui na Documenta de Kassel 2007 e Reem Kolhaas tornado figura onipresente para análises positivas ou negativas…). Do outro lado artistas re-semantizando objetos arquitetônicos, contextos urbanos, interferindo em trechos históricos ou atuando em sítios históricos e patrimoniais. A chave do site-specific, por exemplo, engendrou ramificações de tal maneira que se tornou um manancial a cada dia renovado à reboque do que se consolidou na década de 1990 como “marketing urbano”5.
Patente está que o time dos agentes mobiliários, agora reforçado pelos agentes turísticos tem fornecido material fértil a ser analisado, reinterpretado, interferido, revitalizado…afetado enfim, podemos indagar se hoje a arte contemporânea não está forjando narrativas sobre o urbano numa ordem até então só ocupada pela literatura. Esta ênfase oriunda do “embaçamento” destas fronteiras está evidenciada em muitos artistas que passaram pela residência Capacete, mas não é meu objetivo aqui detalhá-las sob este prisma. Ao invés disto, vou insistir sobre a questão filosófica e ética da hospitalidade.
Em meio às fricções geradas entre estes dois campos, surgem espaços-tempo heterodoxos6 que conferem novo sopro a ambos. Sem se furtarem a mover as fronteiras de suas “missões”, flagram a caducidade das classificações totalizantes7 de outras eras. Estes são espaços onde emerge mais claramente a problemática da hospitalidade.
Acionando tanto a figura do “estrangeiro” da filosofia platônica quanto o antigo Testamento, o tema da hospitalidade se coloca na contemporaneidade como uma noção-limite, uma noção em abismo. Ao invés de focar o lado político-institucional quero aqui chamar a atenção para o lado ético-individual da hospitalidade como desafio frente às migrações e imigrações na cidade contemporânea, sob o impacto de fenômenos incrementados desde as três últimas décadas do séc.XX. Ressaltá-la enquanto atributo de pessoas, ao invés de reduzí-la enquanto atributo de espaços8, acreditando que é nesta esfera, tão relegada, que se dá a compreensão da micro-política. Trata-se antes de um nível de relação que depende do um-a-um, de um sentido ético de hospitalidade radical, um leque de posturas pessoais no seio da dinâmica social. Esta é a hospitalidade tal como entendida pelo filósofo Emmanuel Lévinas (1906- 1995).
É no livro Totalidade e Infinito que Emmanuel Lévinas desenvolve a trama entre os temas do acolhimento, do estrangeiro, do rosto e, enfim, da hospitalidade9
Colocar o transcendente como estrangeiro e pobre é proibir a relação metafísica com Deus de realizar-se na ignorância dos homens e das coisas. A dimensão do divino abre-se a partir do rosto humano. Uma relação com o Transcendente – contudo livre de qualquer influência do Transcendente – é uma relação social.10
Podemos transpor a incitação acima para o contexto de afirmação da diversidade cultural dos nossos dias, que não depende só de organismos e instituições nacionais e internacionais. É necessária uma abertura pessoal profunda em direção a um outro, diverso, representante de uma alteridade absoluta. Abertura que inclui a proximidade física e corporal e que tem no rosto a instância “fundadora”, como um expediente insubstituível para “transcender”.
René Schére11, outro filósofo, investiga a essência filosófica da hospitalidade, em uma passagem sintomaticamente nomeada “entre a residência e a tenda”. Recorre primeiro a Heidegger que, a partir de um poema de Hölderlin, liga a hospitalidade à possessão se não de uma residência, pelo menos de uma terra. Schérer observa que esta ligação entre o cultivo da terra e certo sentido de possibilidade sine qua non da fixação do homem sobre a terra e, daí mesmo, um sentido de hospitalidade, é característico de poetas da época de Virgílio e de Hesíodo. No entanto, o autor não se satisfaz com esta limitação e explora outro caminho que, ao contrário, vai vincular a hospitalidade a um desenraizamento, e aos povos nômades. Ele volta ao poema e aí capta outras chaves de interpretação:
Da exploração agrícola souabe12 aos horizontes limitados, o rio faz passar ao ilimitado das estepes, ao deserto. Ele põe a imaginação na presença do vazio, de um infinito de espaço. Da seara onde o nômade pastor e não o lavrador pratica a hospitalidade por essência.13
Schérer pergunta se a hospitalidade, finalmente, não seria “uma sensibilidade específica ao outro”. A dificuldade imposta pelo pensamento de Lévinas, repara ainda Derrida, é o limite sutil e mesmo ambivalente entre uma atitude de acolhimento totalmente espontânea e somente assim verdadeiramente oriunda de uma ética pessoal digna do nome hospitalidade e, de outro lado, um acolhimento resultante de um quadro jurídico impositivo.
Um segundo tema que Lévinas relaciona à possibilidade da hospitalidade é a aproximação do rosto do outro; o rosto como sede do mistério do outro e como primeira instância da relação com o desconhecido. Então, primeira barreira e primeiro desvendamento, tratar-se-á agora de um momento quase sagrado de aceitação do outro. Mais fundamentalmente – e aqui nos movemos numa área fulcral do caráter essencialmente ético do pensamento de Lévinas -, o rosto engendra a tendência ou não ao assassinato, ele suscita a opção ética entre fazer a guerra ou fazer a paz. Ele preconiza que um dever de hospitalidade não é somente essencial a um pensamento judaico, mas posiciona balizas atuais para os diversos gêneros de “repugnância ao desconhecido do psiquismo do outro, ao mistério de sua interioridade ou, para além de toda aglomeração em conjunto e toda organização em organismo, à pura proximidade com outro homem, quer dizer à sociabilidade ela mesma.”14
O que metrópoles, “cidades-globais”, “megalópoles” mas também pequenas cidades de subúrbios têm em comum neste novo milênio? Elas têm a mobilidade como regra e não como exceção !!! São cada vez mais permeadas por uma função de cidade-exílio, cidade-refúgio15.
A cidade que emerge durante a permanência de alguns trabalhos artísticos é generosa, convida o morador a participar, mais do que lhe fixa como espectador. Isso passa por uma tomada de responsabilidade para com o outro, em sua condição de “estranheza”: quer seja ele pobre, estrangeiro ou simplesmente público “desavisado” em relação à arte. Sobretudo, essa participação é “ativa” ou seja, ela é direta, prática, sem mecanismos intermediários que delegam, às ONGs ou terceiros a instância do face-a-face.
Esse registro deve mesmo permanecer no plano dos afetos, na subjetividade, até porque historicamente, aquela hospitalidade abraâmica que nasceu da abertura da porta privada para abrigar justamente o estrangeiro sofreu a escalada do medo por parte dos administradores políticos de tal maneira que os agentes hospitaleiros se confinaram na esfera do privado, muitas vezes à margem das leis e tratados diplomáticos.
Dos hospitium, para doentes, estrangeiros e peregrinos chegou-se a hotéis, à uma hospitalidade agora mercantilizada, o que lhe tira sua essência Lévinassiana não previsível, não programável, e é hoje parametrizada e regrada em manuais de hotéis, clínicas, academias e at last but not least shopping centers! Por contraste, paralelamente à hospitalidade “de fachada” de nossas instituições contemporâneas a serviço das cidades-espetáculo, podem eclodir, e unicamente de maneira espontânea e imprevista, espaços-tempo de hospitalidade.
Hospitalidade e afeto são duas lentes através das quais podemos também examinar fenômenos ocorrendo no território chamado “periferia” das cidades, sublinhando que a categoria “periferia” talvez tenha sido justamente a categoria mais abalada na última década, desencadeando processos semelhantes no campo das artes. São tecidas narrativas a-cêntricas, haveria um processo “centrífugo” em paralelo ao enriquecimento do circuito tradicional, NY/Londres/Berlim? Quais impactos sobre a geopolítica artística podem trazer micro-políticas de hospitalidade e afeto?
Não é o caso aqui de adentrar nos vários elementos envolvidos que vão desde as fantasias de nomadismo no amplo contexto psicológico contemporâneo até as condições objetivas de trabalho de cada campo e cada lugar. Mas é fácil perceber, por exemplo, que as conquistas tecnológicas, consolidadas no apagar do séc. XX, possibilitaram, com a apropriação de n novas medias, que o deslocamento físico de vários artistas visuais, se torne agora tão leve quanto a mítica liberdade do escritor. Este deslocamento físico flagra contextos de hospitalidade ou de sua ausência.
O fluxo de mercadorias é o elemento que estabelece, segundo Kant, o direito de ir e vir, mas apenas o direito necessário e suficiente para as mercadoria circularem, entre fronteiras nacionais: em suma direito comercial. Este direito de ir e vir, a dinâmica dos fluxos humanos está novamente posta à prova em 2008, no que tange à compreensão dos países europeus que vem deliberando e visivelmente retrocedendo em matéria de humanismo. Como fica o mundo da arte nesta virada, o que é possível hoje invocar da lâmina afiada por Bretch ou por Walter Benjamin? O que é plausível ou implausível num momento de criminalização objetiva das imigrações, de fusão das fronteiras poéticas, e quando, como previu Guy Debord o reino da mercadoria já se espraiou por todo o planeta?
Neste quadro de fronteiras impingidas, o modus-operandis das residências artísticas, significa um espaço de potência, na acepção de Toni Negri, uma resistência e uma fissura acionando por sua vez micro-políticas e a fusão de fronteiras poéticas. O que significa então, abrir uma porta de uma residência? Diz Derrida:
Para ousar dar as boas-vindas… vamos fazer de conta que a gente está aqui na sua casa, que a gente sabe o que isso quer dizer, estar na sua casa, e que na sua casa se recebe, se convida e se oferece hospitalidade, apropriando-se assim do lugar para acolher o outro ou, pior, acolhendo o outro para se apropriar de um lugar e falar então a língua da hospitalidade.16
Trata-se de se relacionar com o outro para criar um espaço, um lugar seu: é o acolhimento que gera a instauração de um território e não o contrário. Agenciamentos de ordens diferentes, sociais, culturais, artísticos vem assim afet(u)ando a cidade objetivamente e subjetivamente. Ao proporem projetos em que o público não é apenas um espectador, mas um co-autor (como dizia Benjamin no ensaio “O autor como produtor”), alguns artistas não estariam (re)criando espaços-tempo da ordem da hospitalidade, da acolhida?
Enfim, importa frisar esta dimensão oculta, composta por hospitalidade e por afeto, que vem sendo soterrada paulatinamente na esteira de regressões políticas mundiais e da exacerbação do medo do íntimo, que se disfarça às vezes com a defesa do espaço público. A falta desta dimensão vem gerando um mal-estar impalpável, quase etéreo, num mundo apenas superficialmente aberto e mercadologicamente repetitivo.
1 Para uma análise rica e detalhada ver FRANCA DE VILHENA, Deolinda. C. “ Visar a perfeição para atingir a beleza.” Sala Preta (USP), v. 4, p. 145-152, 2004. e artigo da mesma autora sobre o Théatre du Soleil através do link: http://www.apebfr.org/passagesdeparis/edition1/articles/p139-VILHENA.pdf
2 Para uma análise específica do Museu Precário ver meu artigo apresentado no II Simpósio Internacional de Arte Contemporânea em : http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.event_pres/simp_sem/simposio/documentacao/comunicacoes-i/thomas-hirschhorn-e-o-museu-precario-albinet-postura-etnografica-e-critica-urbana/
3 Edifícios industriais, entrepostos, hangares, depósitos, fábricas, abondonados que abrigam projetos culturais e artísticos independentes, que geralmente invocam relações peculiares com o público, ganharam visibilidade em 2001 a partir do Relatório Lextrait encomendado pelo ministério da cultura e da comunicação francês.
4 AGAMBEN, G. Homo Sacer. Le pouvoir souverain et la vie nue. Paris : Ed. du Seuil, 1997.
5 Coerente com sua filiação, a variante “urbana” deste ‘conjunto de técnicas e processos” de convencimento para a venda, trata agora da seduzir mais e mais turistas vorazes por um novo museu ou uma recém-aberta caverna de pintura rupestre…cenográfica, mas completamente fiel à verdadeira, ou novo estádio de futebol high-tech !
6 Que poderíamos remeter também às heterotopias Foucaultinas, no cenário de ajuste globalizado das utopias ainda remanescentes, desde a época em que o autor lançou o termo na década de 1970.
7 Coerente com sua filiação, a variante “urbana” deste ‘conjunto de técnicas e processos” de convencimento para a venda, trata agora da seduzir mais e mais turistas vorazes por um novo museu ou uma recém-aberta caverna de pintura rupestre…cenográfica, mas completamente fiel à verdadeira, ou um novo estádio de futebol high-tech !
8 No que seria um tributo à fenomenologia à Gaston Bachelard…
9 Como analisa DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas. Paris: Galilée. 1997.
10 LEVINAS, E. Totalité et Infini – essai sur l’extériorité. Paris : Le Livre de Poche, 2003, p.76.
11 SCHERER, René. Zeus Hospitalier. Éloge de l’hospitalité. Éditions de la Table Ronde, 2005.
12 A palavra souabe em francês indica uma região histórica no sul da Alemanha e o dialeto ali falado.
13 SCHERER, R., op.cit., p.28.
14 Idem, p. 223.
15 Se uma certa imagem da « cidade-refúgio », oriunda do Talmude, resta um caso-limite e hipotético, onde uma certa homogeneidade religiosa reinaria, o próprio Lévinas em L’au delà du Verset lança sua correlação aos dias atuais numa multiplicação de diásporas. Cabe também lembrar Derrida que retoma a idéia em Cosmopolites de tous les pays, encore un effort. Paris : Galilée, 1997.
16 DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas. Paris: Galilée, 1997, p.40.